quinta-feira, novembro 21, 2024
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Nascida e criada em São Gonçalo, Marilene

No aniversario de 133 anos de São Gonçalo trazemos uma história contada pela nativa gonçalense  Marilene Mizumoto dos Santos que viveu e fez história na cidade, falecida quando tinha 52 anos há 17 anos atrás, ela era professora  de história formada pela FFP-UERJ na década de 1990.

Conto por Marilene: Nascida e criada em São Gonçalo

Nascida e criada em São Gonçalo, sempre pensei em deixar como herança  para os meus descendentes as lembranças que tenho da cidade onde vivo há 51 anos.  Participar desse concurso me deu a oportunidade de pôr “a mão na massa” e relembrar um pouco dos momentos inesquecíveis que vivi nesta cidade.

As lembranças me levam a um tempo em que as pessoas se cumprimentavam ao se encontrarem na rua e ainda não reinava a violência. Havia a carrocinha da KIBON, o leiteiro, os circos, que de vez em quando se instalavam no local onde hoje existe o SESI, o bonde, o Cinema Nanci e tantos outros que haviam na cidade, os passeios aos domingos na Praça Zé Garoto (era lá que as “paqueras” aconteciam), os Bailes de Carnaval do Mauá, as Festas Juninas…

Morávamos, eu e minha família, na Rua Nilo Peçanha, na Vila Nossa Senhora da Conceição, bem em frente a oficina São Jorge, onde hoje está instalado o  prédio  da Agência da Caixa Econômica Federal. Era uma vida tranqüila. As crianças cresciam felizes: fazíamos teatrinhos, concursos de miss, batizados de bonecas; brincávamos de roda, chicotinho queimado, mamãe mandou. Aos domingos, os moradores se reuniam para jogar víspora, o que era muito bom, pois todos participavam, inclusive as crianças.  Era ali que se colocavam as fofocas em dia, relembravam velhos “causos”, resolviam-se as pendengas entre as mulheres (normalmente causadas pelas brigas entre os filhos) e, ao terminar o evento, todos estavam mais felizes e pairava no ar a sensação de que ali reinava a amizade e, consequentemente, a paz.

Lembro-me bem das pessoas que moravam na vila, e algumas marcaram a minha infância. Havia D. Percília, uma espécie “mãe de todos”. Era engraçado como ela sabia e tomava conta da vida de todo mundo. Às vezes, quando encontrava o meu pai bebendo uma cervejinha no “Bossa Nova”, um bar que havia no Rodo de São Gonçalo, colocava as mãos nas cadeiras e chamava a sua atenção, mandando-o de volta para casa. E o mais engraçado é que ele obedecia… Assim como ela agia com meu pai, agia com todos os adultos e crianças, e nós a respeitávamos, pois, quando precisávamos dela, estava sempre pronta a nos ajudar. Outra pessoa que me marcou foi D. Maricota, uma portuguesa que adorava ouvir fado e  cheirar rapé e que, às vezes,  deixava que nós, as crianças, o cheirássemos também. Eu adorava! Até hoje, quando espirro, tenho a impressão de ouvir a música e sentir o cheiro do rapé.  Não posso me esquecer de Seu Jailsom, um ex-combatente da II Guerra Mundial. Normalmente era uma pessoa tranquila e alegre, mas que nos dias em que trovejava, se transformava: entrava em pânico, pois lembrava dos momentos em que viveu a guerra. Lembro ainda de D. Geiza, uma senhora com mais de cinquenta anos, que após dez meses de gravidez, descobriu que estava grávida de um mioma. O caso, durante um bom tempo, foi motivo de muito tititi na avenida.

São tantos os personagens que me chegam à memória, que fica difícil selecionar apenas alguns para comentar. Mesmo correndo o risco de deixar de fora alguns bem interessantes, falarei apenas de mais dois: as duas vizinhas que eram  “inimigas mortais” . Quase que diariamente, enquanto faziam o almoço, batiam boca, esquecendo as panelas no fogo. Resultado: as comidas viviam queimando e elas só se lembravam das mesmas, depois de alertadas pelos outros vizinhos, incomodados com o cheiro de queimado.  O mais engraçado é que, ao fim do dia, os seus filhos, que eram o motivo das discórdias, brincavam tranquilamente, enquanto as duas, já reconciliadas, conversavam amistosamente, esquecidas da briga matinal.

Porém, apesar de tantas lembranças, o acontecimento que considero mais marcante e que me levou a escrever foi o dia em que a casa de D. Sebastiana foi invadida por um boi.

Naquela época, a rua em que eu morava não era calçada e por ela passava boiada. Um dia, não se sabe como, um boi conseguiu se desgarrar, entrar na avenida, indo direto para a casa da infortunada onde, após passar pela varanda e pela sala, conseguiu chegar ao quarto, instalando-se confortavelmente na cama de casal. Foi um Deus nos acuda. Como colocar o quadrúpede para fora? Enquanto os adultos se esforçavam para solucionar o caso, nós, crianças, nos espremíamos na janela para observar melhor o acontecimento: Cutuca o boi daqui, enxota o boi pra lá… e o boi, nada. O dito cujo parecia estar satisfeito com a situação: uma cama confortável para descansar e uma plateia atenta a todos os seus movimentos. E nós, apesar de todos os apelos e ameaças para que saíssemos dali,  assistíamos a tudo de camarote,  torcendo para que o animal passasse a noite na casa.

Lá pelas tantas, o condutor da boiada, após um dia inteiro procurando o desgarrado, foi informado do paradeiro do animal e, para a nossa tristeza, chegou ao local, conseguindo, sem muito esforço, retirar o fujão, levando-o embora.             Pensar que o fato de o animal ter sido retirado acabou com a nossa distração é engano. Mal conseguimos dormir de tanta excitação e por muitos dias o acontecimento foi motivo de muitas risadas e assunto preferido de adultos e crianças.

Atualmente, quando eu conto o caso para as pessoas, dificilmente elas acreditam. Não me importo. O fato é que ainda dou boas risadas quando me lembro do “boi de Sebastiana” e agradeço a “Papai do Céu” por ter me permitido viver num tempo e numa cidade onde era possível ser criança simplesmente, sem ter as preocupações que os nossos filhos  vivem.

A lembrança daquelas cabecinhas espremidas na janela me acompanha até hoje e, nos momentos mais difíceis da minha  vida, quando percebo que o desânimo e a tristeza podem se apoderar dos meus pensamentos, fazendo-me esmorecer, é numa daquelas crianças, viva dentro de mim, que encontro forças para prosseguir na minha caminhada

Foto: Marilene, Marize, Claudio em baixo Miriam

local: Vila Nossa Senhora da Conceição Rodo de São Gonçalo

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