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A utopia modernista: a devoração crítica como herança cultural Glauber Mizumoto

Antonio Candido ressalta que a Semana de Arte Moderna, realizada na cidade de São Paulo em 1922, “foi realmente o catalisador da nova literatura, coordenando, graças ao seu dinamismo e à ousadia de alguns protagonistas, as tendências mais vivas e capazes de renovação, na poesia, no ensaio, na música, nas artes plásticas” (CANDIDO, 2006, p. 125). Se a cidade de São Paulo – por sua hibridez natural – é um ambiente mais do que propício para o surgimento de propostas modernistas, muito bem emblematizadas nos manifestos de Oswald de Andrade, um dos protagonistas da Semana de 22, Candido, então, expande esse escopo conceitual para o Brasil no seu todo, delineando sociologicamente o caráter híbrido que prefigura o nosso país, do início do século XX. Nas palavras do crítico literário, “no Brasil as culturas primitivas se misturavam à vida quotidiana ou são reminiscências ainda vivas de um passado recente. As terríveis ousadias de um Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles.” (CANDIDO, 2006, p.129)

É, pois, a São Paulo do início do século XX que sintetizará esse país – que entrava na ordem do mundo urbano-industrial, e ao mesmo tempo carregava o caráter híbrido descrito por Candido. São Paulo, “essa Paulicéia Desvairada, onde os tempos e as culturas se cruzam numa velocidade/simultaneidade vertiginosa(s)”[1], configura, portanto, um ambiente mais do que propício para o surgimento de eventos e propostas revolucionários como a Semana de Arte Moderna de 1922, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil e o Manifesto Antropófago.

Esses eventos muito bem caracterizaram esse nosso primeiro modernismo, que irá, portanto, nutrir de “roteiros, roteiros, roteiros” (ANDRADE, 1978, p. 5) para uma nova forma de encarar a poesia “nos fatos” (ANDRADE, 1978, p. 15) de um país que, naturalmente, dentro do contexto sociológico comentado por Candido, já carregava em si um caráter utópico – no sentido de modernizar o país, projetando-o no cenário da cultura europeia.

De certa forma, o que então para a Europa era um esforço avant-garde, para o Brasil e a América em geral, com a formação miscigenada da nossa cultura, lidar com outras culturas/raças já era um pressuposto comum. Entretanto, numa situação especialmente diferente, pois ainda nos encontrávamos sob a cisma colonial de um país, ainda historicamente dependente, em termos culturais, de uma metrópole bem representada pela Europa. Essa condição histórica nutria de impulsos criativos o que o grande visionário Oswald de Andrade projetaria para a cultura brasileira: “SÓ A ANTROPOFAGIA nos ume. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente” (ANDRADE, 1978, p. 13).

Conforme define Haroldo de Campos (1992, p.234), a “Antropofagia” oswaldiana “é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do “bom selvagem”. Nesse ponto, a antropofagia não é um neoindianismo, reforçando o que já havia sido proposto pelo Romantismo, mas, sim, “um instinto outrora recalcado então (agora) liberado numa catarse imaginária do espírito nacional” (NUNES, 1978, p. 26). O modernismo, nesse caso, desponta como um traço laminar que atravessa, crítica e crucialmente, a sociedade brasileira em plena modernização industrial. O bárbaro tecnizado se faz necessário numa sociedade que caminha cada vez mais em direção ao que então McLuhan chamaria de aldeia global. Já dizia McLuhan (1978, p. 48), “Vivemos num único espaço compacto e restrito em que ressoam os tambores da tribo”.

Em sentido de urgência, Oswald de Andrade, previa e reivindicava, anos antes da publicação da Galáxia de Gutemberg de McLuhan, através de seus emblemáticos manifestos, “uma nova perspectiva” (ANDRADE, 1978, p. 8) para se “ver com os olhos livres” (ANDRADE, 1978, p. 9 – grifos do autor) o Brasil e o seu futuro, em contexto global. Pois como prefigura o Manifesto Pau-Brasil: “Nossa época anuncia a volta ao sentido puro” (ANDRADE, 1978, p. 8).

Este sentido de urgência – que é, de certa forma, a própria volta ao sentido puro, a retribalização do homem tipográfico, retornando à predominância do sentido auditivo, ou nas palavras do antropófago, “[…] atender ao mundo orecular” (NUNES, 1978, p. 15), clamava por uma perspectiva utópica. Utópica por se tratar de um lugar em transição. Utópica por se tratar de um lugar em plena alteração – aberto assim potencialmente – a um porvir tão bem vislumbrado e que correspondia a uma prática programaticamente iniciada pelo poeta Oswald de Andrade. Alicerçando com bases firmes conceitos e ideias perante todo um território fértil para as transformações socioculturais pelas quais o país passaria, tentando se afinar com o diapasão de tendências do mundo moderno. Oswald de Andrade projeta assim o país numa visada utópica/real, de acordo com as palavras de Benedito Nunes:

 

Foi através da História mundial que a história e a sociedade do país puderam ser compreendidas do ponto de vista da Antropofagia, como parte de um ciclo evolutivo da humanidade, – de um ciclo que iniciado na fase do expansionismo colonizador da era moderna, completar-se-ia quando fossem absorvidos, em concomitância com a universalização da técnica, o poder político e o poder religiosos, como últimas manifestações do Superego patriarcal. Espontaneísta, ocorrendo pelas próprias condições da imaginação liberada e da concentração industrial, a “revolução caraíba”, que nos conduziria do utópico ao transistórico, da cronologia da civilização ao tempo da vida primeva por ela restabelecida, consumaria, antes de chegar a esse estágio, sob a forma de uma vingança tribal imaginária, que realizou a violência romântica da rebelião individual, uma reação anticolonialista, deglutidora dos imperialismos (NUNES, 1978, p. 40-41).

 

É sob esta “vingança tribal imaginária […] anticolonialista (e) deglutidora dos imperialismos” (NUNES, 1978, 40-41), que Oswald de Andrade lançará pontos de partida para gerações de “antropófagos” que estavam por vir. Valem aqui citar alguns nomes e movimentos que bem ilustram esse porvir: os irmãos Campos, Decio Pignatari e a o movimento de envergadura internacional da poesia concreta, Glauber Rocha e o Cinema Novo, Helio Oiticica, Gil, Caetano, Tom Zé e a Tropicália, José Celso Martinez e o Teatro Oficina, Arnaldo Antunes, Adriana Calcanhoto, entre outros.

Vale lembrar que esta “vingança tribal imaginária” (NUNES, 1978, 40-41) tem uma repercussão fundamental no que diz respeito ao sistema literário que não só perpassa pelo modernismo como também alcança um ponto de encruzilhada para uma discussão das artes para com os avanços tecnológicos que perfilam, com traços bem delineados, a aldeia global teoricamente desenhada por McLuhan. Nessa aldeia global, ressalta-se o valor simbólico que a comunicação de massa exerceu desde então para tal discussão.  Sobre essa esteira reflexiva, Décio Pignatari, em seu livro Contracomunicação, aponta Oswald de Andrade como o guerrilheiro da idade industrial – demarcando – de forma inaugural – a força simbólica e concreta deste antropófago retribalizado (NUNES, 1978) para uma nova perspectiva de se pensar não só a literatura brasileira, como também a cultural, como um todo.

 

*adaptado do livro “Intruso entre intrusos, eutro: Arnaldo Antunes” (Editora Appris, 2021)

 

REFERÊNCIAS:

 

ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VI: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias – Manifestos, teses de concursos e ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

 

CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos, 1950-1960. Livraria Duas Cidades, 1975.

 

CAMPOS, Haroldo de. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, Oswald de. Pau- Brasil. São Paulo: Globo: secretaria de Estado da Cultura, 1990.

 

_________, Haroldo de (1992a). Da razão antropofágica: diálogo e diferença na literatura brasileira. In: CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, p. 231-257.

 

 

CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira – Momentos Decisivos. 10ª edição/ Rio de janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

 

_________, Antonio. Literatura e Sociedade. 9ª ed/ Rio de janeiro: Ouro sobre Azul,                          2006.

 

McLUHAN, Marshall, A galáxia de Gutenberg; a formação do homem tipográfico. São Paulo, Editora Nacional, Editora da USP: 1972

 

NUNES, Benedito. “Antropofagia ao alcance de todos”. In: ANDRADE, Oswald de. Obras Completas VI: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às Utopias – Manifestos, teses de concursos e ensaios. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978

[1] Trecho extraído da palestra de José Miguel Wisnik disponibilizada no youtube sob o título de “Mário de Andrade e a construção da cultura brasileira”, em programa gravado em 2 de dezembro de 2003. A ideia de velocidade/simultaneidade vertiginosa(s) será uma característica constante nas vanguardas artísticas de São Paulo. A poética de Arnaldo Antunes não deixa de estar contaminada por essa característica. Site de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=mnJ7yVd7nYA <acessado em 27 de março de 2018>.

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